Desescondendo o Brasil profundo
Uma
Cultura Viva desescondendo o Brasil profundo
Célio Turino
Precisamos
descobrir o Brasil! Precisamos desesconder o Brasil, mostra-lo para
nós mesmos e para o mundo. Precisamos entender o Brasil; no lugar de
conceitos rígidos, noções líquidas, no lugar da reta, a curva.
Precisamos nos fundir com o Brasil, tomar um banho em suas águas,
que são muitas . Precisamos conhecer mais os fenômenos em ebulição
e construir conceitos que se modelem no contato com a realidade viva.
Para compreender o Brasil, precisamos nos transformar em poetas .
Precisamos transformar o Brasil!O Programa Nacional de Cultura,
Educação e Cidadania – Cultura Viva, nasce deste desejo. Por
enquanto, o Cultura Viva é um programa do Ministério da Cultura, do
Governo do Brasil, mas nosso objetivo é consolida-lo como política
de Estado, desenvolvendo ações transversais entre ministérios,
estados e municípios. A primeira ação foi assinada com o
Ministério do Trabalho e vai garantir 50.000 bolsas anuais para
jovens do Primeiro Emprego; na seqüência, parceria com os
Ministérios das Comunicações e os Correios (ligação por internet
em Banda Larga – G-Sac- e distribuição de produtos culturais
produzidos pelas comunidades), Meio Ambiente (Salas Verdes), Educação
(Escola Viva), Desenvolvimento Social (Erradicação do trabalho
infantil e Fome Zero), Ciência e Tecnologia (Casa Brasil e
Telecentros), Defesa (Projeto Rondom) e todos os outros programas e
ações onde a cultura couber ( E a Cultura cabe em todo lugar). Para
transformar o Brasil é preciso ir além de uma política de Estado,
afinal, o Estado ainda é de tão poucos. É preciso transformar o
Cultura Viva em política pública efetivamente apropriada por seu
povo. “A sociedade é produzida por nossas necessidades, o governo
por nossa perversidade” (Thomas Paine, O Bom Senso). Mais que
oferecer serviços públicos “para” o povo, é preciso
compartilhar, unir afeições, promover felicidade. “A alegria é a
prova dos nove” (Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico).
Qualidades que o povo brasileiro tem de sobra. Porém, o caminho não
é fácil.Ao mesmo tempo em que olhamos para o Brasil e encontramos
criatividade e solidariedade, nos defrontamos com iniqüidade,
injustiças, maus cheiros, maus tratos... Milhões habitando
periferias, favelas e cortiços; outros tantos em municípios
desasistidos; trabalhadores sem emprego; camponeses sem terra;
famílias sem teto; jovens sem perspectiva de futuro; estudantes sem
ensino de qualidade; índios sem direitos; um povo mestiço mas sem
igualdade racial; os esquecidos, os desvalidos... Os sem
Estado. Mesmo assim, o país resiste na solidariedade popular.
Mães sem emprego cuidam dos filhos das mães que encontram trabalho.
Aos domingos, amigos fazem mutirão para construir casas; ao fim da
jornada, churrasco, samba e cerveja. Os brasileiros são inventivos,
empreendedores e alegres. ”Serão os atenienses da América se não
forem comprimidos e desanimados pelo despotismo” (José Bonifácio
de Andrada, Patriarca da Independência do Brasil). Precisamos moldar
o Estado à imagem de seu povo.O Cultura Viva deseja contribuir para
essa aproximação, em busca de um Estado Ampliado. É um programa de
acesso aos meios de formação, criação, difusão e fruição
cultural, cujos parceiros imediatos são agentes culturais, artistas,
professores e militantes sociais que percebem a cultura não somente
como linguagens artísticas, mas também como direitos, comportamento
e economia. Há muitas ações de combate à exclusão social,
cultural e digital já acontecendo. Fala-se da criminalidade e do
tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro (e em todas as
outras grandes cidades), mas as pessoas envolvidas com isso são
minoria. Muito mais gente se mobiliza para recuperar os morros,
desenvolver música, dança, teatro... E com estética inovadora!
Quem assistiu ao filme Cidade de Deus, se impressiona com a narrativa
ágil e atores vibrantes. Gente das favelas. Na maior favela de São
Paulo, Heliópolis, as casas estão sendo pintadas com cores vivas,
unindo comunidade, um conceituado arquiteto e empresas. No morro da
Mangueira, o samba é fator de inclusão, mas vem junto com uma
orquestra de violinos, emissoras de rádio e TV comunitárias e
grafitagem colorindo paredes e muros. No campo, trabalhadores sem
terra criam suas próprias escolas educando mais de 120.000 crianças,
além de alfabetizar jovens, adultos e velhos. Em um lixão em Maceió
há um circo-escola e valentes guerreiras lutando contra a exclusão
social. Uma nova postura vai sendo construída em um Brasil
escondido. Por isso potenciar o que já existe. Acreditar no
povo, firmar pactos e parcerias com o que o Brasil tem de melhor: o
brasileiro. “O melhor do Brasil é o brasileiro” (Câmara
Cascudo, folclorista). Mas isso não significa um simples “deixar
fazer”, porque, neste caso, os gostos e imposições da indústria
cultural acabariam por prevalecer. Da mesma forma, querer levar
“luzes”, selecionar cursos e espetáculos que julgamos mais
adequados e sofisticados, também continuaria reproduzindo a mesma
relação de dependência e subordinação e apenas trocaríamos o
dirigismo de mercado pelo de Estado. Com o Cultura Viva vamos
experimentar uma outra alternativa, o desenvolvimento aproximal entre
Pontos de Cultura. Nossa idéia é de que a troca, a instigação e o
questionamento, elementos essenciais para o desenvolvimento da
cultura, aconteça num contato horizontal entre os Pontos, sem
relação de hierarquia ou superioridade entre culturas. Um Ponto
auxiliando outro Ponto. Alguns oferecem uma experiência mais
avançada em teatro, outros em dança; ações sócio-educativas
aprendem com a vanguarda estética que se encontra com a tradição e
ajudam a construir o novo. Uma troca entre iguais que aprendem entre
si e se respeitam na diferença. O papel da coordenação do
programa é o de localizar e formar mediadores na relação entre
Estado e Sociedade, aproximando as diferentes formas de expressão e
representação artística, bem como as diferentes visões de mundo.
O programa Cultura Viva ainda não tem uma resposta acabada a todo
este processo que apenas se inicia, mas tenta, ao menos, identificar
caminhos. Ou pelo menos, identificar aqueles que não devem ser
trilhados. De partida, evitamos uma estrutura fortemente
institucionalizada e hierarquizada, pesada na forma de gestão e
controle, muito comum na burocracia pública. Menos consensos
fabricados (e sonhos roubados) e mais conexões de trabalho que
respeitem a diversidade e a busca de microsoluções no
fortalecimento de redes sociais. Para sedimentar esta rede, os Pontos
de Cultura. O nome Ponto de Cultura surge do discurso de posse
do ministro Gilberto Gil, “um do-in antropológico, um
massageamento de pontos vitais da nação”. E que nação é essa?
De certo não é uma massa compacta e estática e muito menos um
conjunto de esteriótipos e tradições inventadas. A nação para
qual olhamos precisa ser vista como um organismo vivo, pulsante,
envolvido em contradições e que necessita ser constantemente
energizado e equilibrado. Uma acupuntura social que vai direto aos
Pontos. “ Quando há vida, há inacabamento” (Paulo Freire,
educador), mais processo e menos estruturas pré-definidas, menos
fossilização e mais vida. A rede Cultura Viva deve ser
maleável, menos impositiva na sua forma de interagir com a realidade
e por isso ágil e tolerante; como um organismo vivo. O objetivo é
fazer uma integração dos Pontos em uma rede global que acontece a
partir das necessidades e ações locais. A interação entre o
global e o local deve respeitar o crescimento das ações
desenvolvidas em cada Ponto de Cultura, de modo que eles ganhem
musculatura e estrutura óssea e conquistem sua sustentabilidade e
emancipação. Este modo de pactuar com a sociedade foi definido como
Gestão Compartilhada e Transformadora e envolve os conceitos de
empoderamento, autonomia e protagnismo social. Enquanto nos afastamos
das velhas “neo” cartilhas, clareamos os conceitos à medida que
a experiência social avança e os fenômenos vão sendo
explicitados. Menos receitadores e mais educadores, este parece ser
um bom caminho.Neste artigos estão algumas idéias, conceitos e
ações que nos permitiram iniciar a caminhada : O Ponto de Cultura
como espaço de sedimentação da macro rede Cultura Viva, de
organização da cultura no nível local e de mediação na relação
entre Estado e sociedade e entre os outros Pontos, constituindo redes
por afinidade; a Cultura Digital como um instrumento de aproximação
entre os Pontos que desencadeia um novo modo de pensar a tecnologia,
envolvendo generosidade intelectual e trabalho colaborativo (por
isso, o software livre como opção tecnológica e filosófica); os
Agentes Cultura Viva como protagonistas de um processo que integra
inclusão social, econômica, cultural, digital e política na
construção de uma cidadania emancipatória; a Escola Viva como uma
ação que integra o Ponto de Cultura à escola, apontando para um
outro modelo de envolvimento social com a educação, que vai além
dos muros escolares na busca de uma cidade educativa. Definidas
estas quatro ações (Ponto de Cultura, Cultura Digital, Agentes
Cultura Viva e Escola Viva) observamos que faltava uma integração
dialética entre tradição, memória e ruptura. Tradição enquanto
ponto de partida, memória enquanto reinterpretação do passado e
ruptura enquanto invenção do futuro. Assim, incluímos uma quinta
ação, o Griô, que será lançada até o final de 2005 e vai
oferecer bolsas para os velhos mestres do saber popular: os
organizadores, de quadrilhas, de folias de reis, congadeiros,
artesãos, paneleiras, rendeiras, repentistas, rabequeiros,
contadores de histórias, construtores de brinquedos, baianas do
acarajé, mestres de capoeira... Velhos brasileiros que tanta
sabedoria tem a nos oferecer. Cada um receberá um salário mínimo
por mês para formar jovens aprendizes e continuar fazendo exatamente
o que já fazem. Griô foi a forma abrasileirada que encontramos para
a expressão em francês Griot, que designa artistas e narradores de
história da África Ocidental, homens que caminhavam (e caminham) de
aldeia em aldeia repassando a história de seu povo. Ao
transformarmos o Griô em uma ação do programa Cultura Viva
pretendemos nos aproximar ainda mais do saber popular e nos encontrar
com a África. Unindo este conjunto de ações, um programa na
televisão, uma revista, cartaz mural e portal pela internet,
efetivando a integração em rede e o protagonismo dos Pontos de
Cultura.
Assim,
mergulhamos em um Brasil profundo, escondido. “Um outro mundo é
possível” (Fórum Social Mundial). Esse é o caminho que
escolhemos e para o qual convidamos todos aqueles, brasileiros ou
não, a caminhar conosco, por uma Cultura Viva.
Fonte: http://www.interblogs.com.br/celioturino/post.kmf?cod=4827058
Fonte: http://www.interblogs.com.br/celioturino/post.kmf?cod=4827058
Comentários